27 de julho de 2018

Como assim ser trans questiona a biologia ou o feminismo?

Como assim ser trans questiona a biologia ou o feminismo?

Nunca fez sentido para mim as pessoas começarem a vomitar aulas de biologia para questionar a validade de pessoas trans. Sim, nós podemos até ter aprendido que determinado corpo pertence a mulheres e outro tipo pertence a homens. Mas, para além de isso não ser inteiramente verdade - dado que pessoas intersexo são registadas como homem ou mulher e, mesmo que se possam identificar com o género com que foram registadas, continuam a ter um corpo diferente do que nós indicamos como masculino/feminino - é apenas uma questão de nomenclatura. O quê que custa dar nomes a certos tipos de corpos sem qualquer relação com os termos feminino e masculino? Ou, pelo menos, dizer que um certo corpo é comum entre pessoas designadas mulheres à nascença e o contrário de uma perspetiva binária? Ou dizer que quem tem x tipo de corpo são mulheres cis, homens trans (caso não hajam intervenções médicas) e algumas pessoas não-binárias, e vice-versa?

A sério, em quê que isso afeta a ciência/biologia/medicina? Não são só palavras?... Que até acabariam por ser mais accurate/adequadas caso sofressem alterações, dado que pessoas trans mudam o seu género no registo quando podem, portanto passamos a ter homens e mulheres (não há muitos países que permitam o registo de pessoas não-binárias) com um corpo diferente do que aprendemos que teriam. Apenas fazendo alterações é que o que está na lei ficaria em conformidade com a terminologia ciêntífica.

Como é que alguém pode, contudo, opôr-se à luta por uma terminologia que 1) não afeta minimamente a ciência e 2) inclui/respeita toda a gente - insistindo que, por exemplo, mulheres trans são homens porque o corpo delas (recuso-me a usar os pronomes que pessoas que pensam isso usariam para se referir a mulheres trans) apresenta x caraterísticas comuns em homens cisgénero - ultrapassa-me.

Os nomes, somos nós que damos. Associar certas coisas - como sexualidade, corpo, comportamento, gostos, papel social e expressão de género - a certos géneros, também fomos nós que o fizemos. Daí tanta gente dizer que género é uma construção social - essa frase não se refere à noção de género em si, mas ao modelo. Transcende-me completamente *no pun intended* como é que até mesmo algumas feministas (TERFs E TWERFs), que lutam para acabar com a noção de que todas as pessoas se enquadram no modelo de género estabelecido, lutam contra estereótipos em relação a tudo, menos ao corpo. Se uma pessoa pode ser (por exemplo) homem e gostar de ficar em casa a cozinhar e cuidar da família, e está só a ser fiel a si, qual é o problema em ter um homem trans com partes do corpo não esperadas num homem? E mesmo que ele seja super masculino (no sentido tradicional) e não questione ativamente estereótipos de género, também não os está a reforçar só por ser fiel a si - o homem dono de casa do exemplo anterior também podia ser bastante masculino em muitos aspetos e se calhar só pelo seu papel social já estaria a ser aplaudido. Porquê cobrar a algumas pessoas mais do que a outras?

Não é assim tão difícil, porra. Ser homem/mulher não implica que uma pessoa goste exclusivamente e necessariamente de pessoas do género binário oposto ao registado, não implica que tenha um dado comportamento/gostos/aparência, não implica um papel social específico... e não implica um dado tipo de corpo.

Quanto ao argumento "a experiência é diferente!", isso só denota uma falta de reconhecimento muito grande no que toca a questões interseccionais. Não é por duas pessoas pertencerem a um mesmo grupo que têm uma experiência igual, até mesmo por influência das várias esferas sociais a que pertencem, que podem diferir. Por exemplo, mulheres brancas e mulheres negras podem ser ambas mulheres, mas enquanto que mulheres brancas tiveram de ativamente lembrar a sociedade de que algumas delas podem ser fortes, mesmo em termos físicos, as mulheres negras eram escravas que tinham de fazer trabalhos físicos apesar do seu género/sexo. Têm experiências comuns e distintas. Entre mulheres cis e mulheres trans, ou homens cis e homens trans, é a mesma coisa: há semelhanças e diferenças, e as palavras cis e trans servem perfeitamente para destacar o que é diferente quando tal for relevante.

Carago, a palavra trans - e a existência de pessoas que se enquadram no guarda-chuva da definição - RECONHECE a biologia, por alguma razão existe em oposição a cis! E não reforça estereótipos de género coisa nenhuma.

- Mulheres trans são um tipo de mulher tão normal e válido como mulheres cis, mesmo que tenham sido designadas homens à nascença. Devem ser referidas como mulheres e no feminino.

- Homens trans são um tipo de homem tão normal e válido como homens cis, mesmo que tenham sido designados mulheres à nascença. Devem ser referidos como homens e no masculino.

- Pessoas não-binárias são não-binárias, normais, válidas e podem incluir-se na comunidade trans, independentemente do género designado à nascença. Deve-se perguntar-lhes como é que preferem ser referidas ou tentar usar um tratamento neutro.

- Pessoas com géneros especificamente culturais não deviam ter de abdicar da sua identidade de género e cultural por conta de sociedades ocidentais que não as respeitam. Deve-se perguntar-lhes como é que preferem ser referidas ou tentar usar um tratamento neutro.

Não há qualquer necessidade de negar o género de ninguém com base nem no argumento biológico, nem no argumento feminista. Acreditar no contrário é pura transfobia, mesmo que possa ser transfobia internalizada e inconsciente.