Daniela Filipe Bento é uma ativista lgbt+, e quando vi esta publicação» www « deli, não consegui evitar pensar na quantidade de discussões que me deixaram esgotada. O número de pessoas que acredita em mitos é abismal, mas o problema nem é esse - estaria tudo bem se assumissem uma posição de ouvintes. O problema é quando querem que o seu "pensamento crítico" - ou devo dizer acrítico? - seja o centro da discussão. O problema é quando pessoas que não sabem assumem que sabem, mais até do que as outras pessoas que participam na discussão.
Aquilo que mais me tem arreliado são questões trans, pois nota-se que muita gente acha que tem direito a atenção sem sequer pesquisar a definição do conceito chave: transgénero. Fico profundamente esgotada, porque aquilo que essas pessoas vomitam transparece o que pensam de nós, não sendo só coisas más, como tambem mentiras. Mentiras em que toda a sociedade acredita.
Pessoas trans são pessoas que não se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença. Quem não sabe o que é identificação, devia pesquisar isso também. Pista: Não depende de fatores externos, e decididamente uma pessoa não é trans por querer vestir uma roupa pouco tradicionalmente associada ao género com que foi registada... isso seria expressão de género! Sim, roupa, maquilhagem, cabelo e comportamento são coisas relevantes para algumas pessoas trans, mas também o são para certas pessoas cis - isto é, para pessoas que se identificam com o género com que foram registadas, consideradas o "padrão" da nossa sociedade. Ninguém é mais ou menos um género por causa daquilo que veste. Ninguém é cis ou trans por causa da relação entre aquilo que veste e aquilo que se espera que vista.
Quando vozes de destaque de uma discussão tentam argumentar que não faz sentido reconhecer o género/pronomes da minha comunidade com base na noção de que roupa não define género... eu quero simultaneamente rir e chorar. Porque é claro que não define! Um homem pode usar vestidos, uma mulher pode usar um fato, e isso é válido tanto para pessoas cis como para pessoas trans. Mas nenhuma pessoa trans concluiu que é do género que é com base numa premissa retrógrada como essa. Ser trans não implica discordar disso! Muitas vezes, até pelo contrário, mas em todo o caso, são questões separadas. Só que ao equacionar ser trans com "querer vestir certas roupas e reforçar estereótipos de género", o argumento destrói-se a si próprio.
Quando assumem que pessoas trans acreditam em noções assim, a minha comunidade está a ser tratada como se tivesse ficado presa num tempo em que imposições de género eram aceitáveis. Reparem, essas imposições verificam-se em muitos lugares do mundo, e eu não duvido de que hajam pessoas com uma educação insuficiente para lhes permitir discernir se são trans ou apenas género não-conformantes (termo guarda-chuva para pessoas que não aderem a estereótipos de género, seja da maneira que for).
Aquilo que mais me choca é a sociedade não notar que, ao dizer isso, le argumentadore está a denunciar ignorância, arrogância e julgamentos precipitados. Ingorância por achar que ser trans é "querer ser do género que combina com as roupas que quer vestir", arrogância porque acha que percebe alguma coisa do assunto sem pesquisar primeiro, e porque se acha iluminado por vir dizer que roupa não define género (como se não estivessemos em 2018), e julgamentos precipitados porque denota não conviver o suficiente com as pessoas das quais está a falar, caso contrário, não só constataria estar errado, como constataria que a comunidade trans não é um monólito. Se uma mulher trans fosse um homem que se considera mulher porque gosta de usar vestidos e acha que isso é que define o que é ser mulher, como é que haveriam TANTAS mulheres trans que optam por um estilo mais masculino? A sério, quero que alguém me explique como é que essas pessoas podem coexistir com a acusação de que pessoas trans reforçam estereótipos.
Quando grande parte de nós somos feministas e acabamos tratades como um monólito acéfalo, não só me sinto pessoalmente insultada como me enraivece ver a sociedade pintar-nos como inimigues do progresso e dos direitos de género - em vez de entenderem que o inimigo é o patriarcado ou, numa perspetiva mais inclusiva, o kiriarcado (kyriarchy). Nós estamos a lutar na mesma direção, não contra! Enraivece-me constatar que nem se dão ao trabalho de pesquisar se somos mesmo estúpides e acreditamos em ideias retrógradas - isso é logo assumido.
"Eu luto pelo teu direito de vestires e seres o que quiseres, mas não me obrigues a tratar-te por X pronomes. Sou livre para acreditar no que quiser"
- opinador anti-trans random
Eu sei que este meu texto foi um bocado ríspido, e em nada posso garantir que as minhas palavras - muito menos a minha atitude - estejam de acordo com o que a Daniela pensa e deseja representar, já que o texto deli foi apenas um ponto de partida. Mas eu escrevi isto tudo precisamente por ser uma discussão que me deixa cansada - ativistas estão habituades a esclarecer as pessoas, mas também se cansam, sim, e quando alguém atinge o limite, é normal que use menos palavras meigas. Não, eu não acredito que a violência resolva nada, mas também não acredito que facilitar a compreensão de pessoas que beneficiam de um sistema discriminatório seja a solução, principalmente porque isso normalmente implica abafar a existência e os direitos das pessoas mais marginalizadas dentro das próprias minorias. Minorias não têm de "merecer" direitos só enquando agradarem às maiorias, e respeito condicional não é verdadeiro respeito.
Sim, podes acreditar num Deus, Deusa, deuses, energias, espíritos ou outra coisa qualquer. Mas a existência de pessoas trans é demasiado material para estar sujeita às tuas crenças - nós interagimos contigo todos os dias. Lutares contra estereótipos de género em nada ameniza a tua transfobia, porque essa luta engloba toda a gente, não só pessoas trans, e ninguém está a mandar acreditar que roupa define género, porque nem pessoas trans acreditam nisso. Não sei como deixar este ponto mais claro - isso é discutível sequer? Quando tu me dizes que não acreditas em nós - quando não respeitas o nosso género ou pronomes - estás, mesmo que inconscientemente, a dizer uma coisa totalmente diferente: Estás a dizer que não acreditas que sabemos quem somos. E isso é desumanizador.
Quem é que sabe? Tu?
------------
» Notas relevantes:
Ainda, eu poderia ver uma pessoa a berrar ou a chorar baba e ranho por não ter direitos, sem a criticar necessariamente - emoção e racionalidade não são duas coisas incompatíveis. Desde que o conteúdo do que dissesse fosse igual ao que diria se estivesse calma, o argumento seria igualmente válido. Ainda, recusar ouvir pessoas que estão num estado agitado ou emocional é uma atitude hipócrita e que denota imenso privilégio, porque só pessoas privilegiadas é que estão em posição de se distanciar de um debate, já que o resultado do mesmo não irá afetar as suas vidas e portanto tudo pode ser encarado como um exercício mental ou uma situação hipotética.
Como podem ver, este meu texto "zangado" não anula 1) os meus argumentos 2) a quantidade de pesquisa que fiz 3) a minha capacidade para dizer coisas pensadas e coerentes. Não aceito portanto críticas neste sentido.
Qualquer outra coisa, estou disposta a explicar melhor. De novo, eu não me importo que haja desconhecimento - eu até há 3 anos atrás achava que mulheres trans (e eu nem sabia que o nome era esse) eram homens pedófilos disfarçados de mulheres. Sim, eu envergonho-me de ter pensado isso e responsabilizo-me enquanto parte do problema - mas precisamente por eu ter sido assim, me orgulho do quanto mudei e de ser parte da solução, e aliás, parte da própria comunidade. Não há nada como parar de alienizar um grupo de pessoas para perceber o quanto temos de comum com elas xD O que eu quero dizer é que, se aprendi tanto no espaço desse tempo, foi porque ativistas incríveis e incansáveis estiveram sempre presentes para me ajudar a aprender, e não dá para aprender sem cometer erros. O problema não é não saber nem errar. O problema é agir como já se soubesse tudo, principalmente como se soubesse mais sobre alguém do que a própria pessoa. Não tenham vergonha de fazer perguntas ;)