7 de maio de 2018

The gender tag {em português}

Decidi responder porque sim. As perguntas originais são retiradas daqui: [www].

Disclaimer: corporalidade, adequação a estereótipos de género e género propriamente dito são coisas distintas, e não é por alguém se desviar das combinações mais tradicionais que é relegado ao espectro trans ou coisa assim. Só a própria pessoa pode saber qual é o seu género, independentemente de fatores externos.

1. Como é que auto-identificas o teu género, e o quê que esse termo/definição significa para ti?
Que ótima primeira questão :3 Então, a maioria das pessoas que me conhece sabe que eu sou feminista e me refiro a mim no feminino mas, na verdade, eu não sou mulher (obs, sou afab, assigned female at birth). Não completamente. Eu identifico-me como pessoa não-binária. Não me identifico propriamente como trans, isto dito, por definição, reconheço que estou no espectro - acho que a única razão pela qual a label não me parece assentar tão bem é pela maneira como as pessoas associam trans a identificar-se com o género binário oposto ao designado, o que decididamente não é o meu caso. Aliás, mulheridade é algo muito significativo para mim, e em nada me identifico como homem. É mais uma identidade que flui entre feminina e neutra, havendo várias labels que já pensei que se adequam a mim: genderfluid, genderflux, demigirl, trigender com mulher, agénero e género neutro... sim, esses dois termos são significativamente diferentes para mim, há momentos em que sinto que o meu género está entre o feminino e o masculino, e outros em que o sinto "vazio". Em todo o caso, não-binárie está bom. 

2. Que pronomes te honram?
Ela e elu. Dá para aprender a usar o pronome elu e linguagem não-binária em pt [neste link].

3. Descreve o estilo de roupas que costumas usar.
Hum... eu não tenho um estilo muito definido. Normalmente eu uso camisolas largas e compridas com calças de ganga skinny ou leggins com vestidos. Tenho tentado um estilo mais masculino recentemente, mas ainda não tenho roupas suficientes para isso xD Isto dito, a roupa não é particularmente significativa para mim, e gosto bastante de peças femininas. Só não costumo muito usar calções e saias, mas é mesmo porque eu detesto os pontos pretos que ficam nas minhas pernas depois de rapar os pêlos, e já desisti de usar cêra. Sinceramente. 

4. Fala das tuas escolhas relativamente a pêlos/cabelos/barba/pêlos faciais? O quê que decides depilar, ou não o fazer?
Pêlos não me incomodam noutras pessoas, mas em mim, odeio-os profundamente. Por um lado porque os meus pêlos são comrpidos, grossos, escuros e MUITOS, pelo menos nas pernas e virilhas, e eu realmente não gosto de os ver. Então são algo que por mim nem sequer veria a luz do dia, independentemente de como eu me identificar. Isto dito, embora eu no começo me depilasse com cêra, comecei a deixar de ter tempo e, como tinha de tirar os pêlos nem que fosse quando andava no ballet, acabei por ter de usar a gilete. Estraguei tudo >.< Eu agora tenho pavor de usar cêra, dói muito mais do que doía antes, e com gilete, não só teria de tirar os pêlos todos os dias pa evitar que se vissem como, mesmo tirando, se notam uns pontos pretos horrorosos. Por outras palavras, eu estou muito perdida, desesperada por ter dinheiro para fazer depilação a laser, e enquanto não fizer, não vou mostrar um único bocadinho de pele que seja. Oh, e também tenho pêlos no queixo e no pescoço que quase parecem barba, e que tenho de tirar constantemente com uma pinça, de novo, uma perda de tempo.

Caso não esteja claro ainda, eu livrar-me-ia deles...Esteticamente, eu detesto-os. Mas sendo feminista e tal, também sou capaz de reconhecer que este meu pavor de não querer sequer deixar os pontos pretos na pele serem vistos deriva imenso de preconceito internalizado. Eu por uns tempos não gostei do meu cabelo nem das minhas pernas, mas não andei a esconder. Porquê que faria isso com os meus pêlos, se não tivesse causas extra? Mas o preconceito não é só meu, é das pessoas à minha vola também, e em parte, eu não mostro os meus pêlos por medo das reações e do que toda a gente vai pensar. Até a minha mãe critica imensos os pêlos, diz que se eu deixasse a "barba" crescer nem me dariam emprego porque eu já quase "pareço um homem" (seja lá o que for que isso quer dizer), e provavelmente tem razão. Não só isso, eu acho que o facto de eu me opor tanto à ideia de tomar hormonas para ter um ar mais andrógino tem a ver com o medo de deixar crescer os pêlos e ganhar barba - sendo que, quando penso em tomar hormonas, isso me parece simultaneamente uma fonte de arrependimentos e de libertação, porque se eu realmente parecesse uma pessoa mais masculina, não seria tão julgada por ter pêlos. Sim, strong feelings xd Mas não necessariamente relacionados com disforia, já que neste aspeto eu prefiro um ar mais feminino.

Em relação a cabelo, desde que o cortei que me tenho sentido muito mais feliz, embora a reação de algumas pessoas me tenha deixado meh. Escrevi um textão sobre isso [aqui].

5. Fala de cosméticos. Usas maquilhagem? Pintas as unhas? Que tipo de perfumes usas, se algum?
Não uso NENHUMA dessas coisas. Mesmo cremes para a pele são algo de que me esqueço constanteemente de por. Isto dito, adoro ver unhas pintadas e certos estilos de maquilhagem, e eu gostava de aprender a usar, coisa que poderá ser possível se o meu cosplay de houseki no kuni for para a frente, porque eu recuso-me a fazê-lo sem estar devidamente maquilhada. Uma das razões pelas quais não uso, though, é porque tenho alergias e estou sempre a coçar os olhos, que ficam ensopados, coisa que eu não poderia fazer se usasse maquilhagem. Isto dito, mesmo que não tivesse qualquer problema ao usar maquilhagem e soubesse fazê-lo, não usaria diariamente, pois não acho que combine comigo, e prefiro usar o meu tempo para outras coisas. É uma daquelas coisas que eu encaro como demasiado femininas para combinar com a maneira como me costumo sentir. 

6. Já experienciaste misgendering? Se sim, com que frequência?
Pfft, todos os dias, sempre! Acho que esse é um mal comum das pessoas não-binárias, principalmente em países onde a língua oficial atribui género a tudo - inclusivamente a objetos - como é o caso de grande parte das línguas derivadas do latin. Então é quase impossível alguém me tratar com pronomes neutros, já que a linguagem não binária de que já falei não é oficial, e a maioria das pessoas demoraria a aprender. Não que seja difícil, na verdade, mas eu própria me sinto um bocado receosa ao falar de uma maneira "gramaticalmente incorreta" - só me sinto confiante ao fazer isso em grupos lgbt+. Tratamento neutro, para todos os efeitos, não existe. Para além disso, 99% das vezes eu sou imediatamente lida como mulher cis, mesmo tentando ter um ar mais andrógino para ver se faço as pessoas hesitar. Em todo o caso, mesmo quem sabe que eu sou nb me trata no feminino, e embora algumas pessoas o façam por falta de compreensão, outras fazem-no porque mesmo vendo-me como nb, não é fácil tratar de outra maneira. 

7. Sentes disforia? Se sim, como é que te afeta?
Disforia física, não. Quanto muito, eu tenho recentemente começado a suspeitar de que a aversão que sempre senti pela ideia de ficar grávida. Nem é pela ideia de ficar grávida de alguém em concreto, mas pelo simples facto de o meu corpo suportar essa funcionalidade. Isto dito, não sei até que ponto isso é disforia, já que muitas pessoas que se identificam como mulheres cis também se sentem assim - ou talvez deva dizer que disforia física não se verifica só em pessoas não-cis? I mean, há montes de mulheres cis que odeiam certos aspetos do seu corpo, aspetos esses relacionados com género. Acho que depende de como se define disforia...

Isto dito, sinto uma significativa disforia social, devido aos pronomes e ao misgendering. Enfim, basicamente derivada daquilo que disse no ponto 6.

8. Fala de crianças. Tens interesse em ter filhos? Gostarias de carregar uma criança na barriga se essa fosse uma opção? Gostarias de ser a principal pessoa encarregada das crianças que poderias ter?
Como já disse, a ideia de ficar grávida dá-me aversão. Agora, eu sempre quis adotar, e a minha mãe encoraja-me fortemente a fazê-lo. Aqui em Portugal já é possível recorrer a barriga de aluguer, mas sinceramente, eu dispenso. "Sangue" é algo muito pouco significativo para mim, e em nada acho que a família se definei através dele. Acho que já há muitas crianças aqui que merecem oportunidades e devidos cuidados.

Eu não quero adotar para que as crianças se sintam em dívida para comigo - eu não as vou "salvar", e elas nunca deveriam ter ido parar a um orfanato para começo de conversa. Eu apenas quero transmitir as coisas que sei a crianças e quero ter a oportunidade de criar ser humaninhos em condições, com oportunidades, sentido crítico e respeitadores do mundo - se já há crianças aqui a precisar de uma oportunidade, e eu nem quero engravidar, dá para dizer que nos ajudariamos mutuamente se eu as adotasse. Oh, e eu nunca esconderia que as adotei. Se seria a principal pessoa encarregada ou não, é-me indiferente, mas provavelmente seria mais seguro no caso de haverem complicações familiares, pois não quereria ficar sem elas.

9. Fala de dinheiro. É importante para ti suportar uma família que possas escolher ter financeiramente? É importante para ti ganhares mais dinheiro que parceires que possas ter? Preferes pagar em encontros? Sentes-te desconfortável quando alguém se oferece para pagar coisas por ti?
Se alguém se oferecesse para pagar as coisas por mim, era um grande favor que me fazia xD Mas eu percebo que essa pergunta derive do facto de que em muitos lugares, homens se oferecem para pagar coisas pelas mulheres, manter a porta aberta para "senhoras" entrarem primeiro, etc... formas de etiqueta que realmente considero fúteis e inteiramente baseadas em gender roles, pelo que fico contente por serem atitudes em vias de extinção aqui em portugal. OBS: Se algum casal se sente bem em papéis assim, fico feliz por ele. O que não gosto é da ideia que que essas normas sociais podiam ser aplicadas a toda a gente.

Não me é importante ganhar mais ou menos que ninguém, mas é importante para mim ganhar o suficiente para ser independente e suportar pessoas que possa ter a meu encargo. 

10. Mais alguma coisa que queiras partilhar sobre experiências relacionadas com o teu género?
Hummm... é engraçado como a minha perspetiva sobre o conceito de género mudou nos últimos anos, e como isso afetou a maneira como via o meu próprio género. Como já disse, mulheridade sempre foi algo muito importante para mim. A minha mãe nem sequer me educou de uma forma muito tradicionar "para rapariga", e sempre me tentou abrir os olhos para o mau uso que podia ser dado à religião e à política para oprimir pessoas que "nascem mulheres". Eu não concordo com muitas das coisas que ela me transmitiu, e aprender sobre feminismo - aquele feminismo completo, que reconhece montes de nuances e é interseccional - foi bom até para expandir as opiniões dela, que me parecem muito mais justas agora. Mas em todo o caso, eu acho que sempre encarei ser mulher como aquela parte de mim da qual simultaneamente me orgulhava e me pesava. É uma parte tão significativa da minha identidade que sei que, por muito fluído que o meu género possa ser, nunca cesará de existir. 

Contudo, em parte por ser algo que me define tanto, e em parte devido ao quão desinformada estava em relação a questões trans, sinto que nunca me permiti reparar em partes mais neutras que também constituiam o meu género. Damn, eu achava que mulheres trans eram pedófilos que se vestiam de mulheres por fetiche ou para se aproveitarem de outras mulheres!... Quando comecei a aprender sobre feminismo though, e isso me levou a páginas de anime feministas ou focadas em yaoi - não, nem todas as páginas de yaoi são éticas sequer, mas há muitas que se salvam - comecei a ter mais contacto com a comunidade lgbt+. Só mais tarde ainda, ao descobrir que era bi e começar a pesquisar sobre questões lgbt+, fui aprendendo sobre cada uma das sub-comunidades... foi como passar a ver o mundo com outros olhos! xD Eu fui uma sortuda, diga-se, porque as primeiras fontes que encontrei eram muito completas e faziam sentido entre si - as primeiras definições que encontrei de trans é que a palavra significava "pessoa que não se identifica com o género designado à nascença". Se eu tivesse encontrado uma definição semelhante a "pessoa que se sente presa no corpo errado" ou outra noção assim redutora e que nem sequer se aplica a todas as pessoas trans, teria sido muito complicado utilizar essa base para aprender outras coisas mais tarde. Mas não. Eu tive a sorte de aprender coisas que me permitiram assimilar quase de seguida conceitos relacionados com vivências não-binárias, distinguir género de sexo e expressão de género, entre outros pilares daquilo que hoje sei. E tive a sorte de tudo isso me permitir rever naquilo que encontrava, por refletir uma variedade tão grande de experiências e identidades. 

Foram dois anos de aprendizagem intensa, e este último para lapidar um bocado melhor algumas arestas. Modéstia à parte, eu acho mesmo que sei muito sobre questões lgbt+. Mesmo assim, só no ano passado é que me apercebi de que era não-binárie, porque até lá demorei a entender porquê que a luta não-binária fazia tanto sentido e era um tópico sensível para mim. O que eu estou a tentar dizer aqui é que, por um lado, toda a gente vai a tempo de mudar e, por outro, que é realmente imprescindível estar informado.

Pronto, era isso ^^