Enquanto pessoa do sexo feminino, não posso dizer que a minha experiência
quanto ao meu género atribuído à nascença tenha sido má. Oh, houve alguns
percalços, desde estranhos a assobiar-me e até uma vez seguir-me na rua desde
que tenho 10 anos, a fãs de coisas nerds ou otakus a ignorar a minha
contribuição para essas conversas, preferindo falar com o meu pai que me
acompanhava mas pouco percebia do assunto, porque não pareciam acreditar que
uma “rapariga” percebesse do assunto. Mas – talvez por viver em Portugal –
esses episódios são raríssimos, e os episódios positivos são muitos mais. Os
meus pais sempre me encorajaram a experimentar todo o tipo de atividades, nunca
ouvi incentivos para aprender a cozinhar para sustentar um futuro marido, e mesmo
estando a trabalhar na área de engenharia informática, onde a proporção de
mulheres para homens é cerca de 1 para 15 (se não menos), nunca ninguém
apresentou expectativas positivas nem negativas com base no género que entendem
que tenho. Sem exagero, eu cheguei em criança a sair em jornais infantis em
notícias como “única rapariga a fazer a escalada” num evento no Parque da
Cidade no Dia Mundial da Criança, e contudo eu não escalei para fazer nenhum statement político, só porque me
apeteceu. Nunca me pressionaram para ter filhos, nem para casar, e os meus pais
até aceitaram que eu sou bissexual, embora a minha mãe tenha demorado mais
tempo. A única coisa em que ainda sinto pressão por ser entendide como mulher é
para fazer a depilação, mas verdade seja dita que eu não gosto de pessoas
excessivamente peludas, sejam do género e sexp que forem.
Sim, género E sexo, porque isso são duas coisas separadas. Por sexo
obviamente entende-se a biologia da pessoa, e mesmo isso não é binário, havendo
quem é intersexo e apresente caraterísticas sexuais ambíguas (não,
hermafroditismo completo não ocorre nos seres humanos e por essa e outras
razões o termo “hermafrodita” é incorreto). Já género é mais difícil de definir,
porque tem a ver com como a pessoa se vê a si própria, como se identifica. A
razão não interessa: embora seja importante combater estereótipos de género e
seja incorreto dizer que alguém é do género ao qual melhor adere aos
estereótipos associados, é válido uma pessoa começar a questionar o seu género
por causa da sua aderência a esses estereótipos. Há quem questione também por
causa da maneira como se sente em relação ao seu corpo e do que considera
disforia física, um certo desconforto e stress relacionado com partes do corpo
usadas para designar o seu sexo – e contudo, também é difícil dizer que é isto
que denota que uma pessoa é trans, porque nem todas as pessoas trans sentem
disforia, e porque a biologia não foi exatamente simpática ao atribuir às
pessoas coisas como períodos. Há ainda disforia social, que tem a ver com o
como alguém se sente a ser tratada pelos pronomes e outros indicadores de
género: se os pronomes associados ao seu género de registo a deixam
desconfortável, se está confortável com esses mas se sente ainda melhor com
outros, se passa mal quando alguém se refere a si como homem ou mulher… Tantas
coisas fazem parte da experiência trans, e da experiência cis – pessoas que não
são trans e portanto se identificam com o género de registo à nascença – e
contudo, nenhuma dessas coisas serve como critério. Só cada indivíduo pode
afirmar aquilo que é.
E é assim que um assunto complicado na verdade se torna simples: as pessoas
não precisariam de tentar entender o que é género se dessem umas às outras
autonomia para se identificarem como se sentissem melhor. Em parte, esse roubo
da autonomia às pessoas trans vem do facto de que muita gente receia que isso
se sobreponha à luta pelos direitos das mulheres cis, e que o reconhecimento do
género de alguém abafe a discriminação com base no sexo. Esse receio é
infundado: como sexo e género, do ponto de vista da luta trans, são
apresentados enquanto conceitos distintos, as lutas são distintas também e não
há razão nenhuma para se invalidarem – pelo contrário, há até experiências
comuns que poderiam fortalecer ambos os movimentos. Porém, para complicar tudo,
há pessoas no espectro trans que são não-binárias – isto é, que não se
identificam 100% ou a tempo inteiro com um dos géneros binários, homem e
mulher. Isso por si é bastante inofensivo. Mas quando a única menção a pessoas
não-binárias que a sociedade tem são memes, onde trolls agem como se pessoas
não-binárias se identificassem não com géneros mas como objetos (árvores, attack helicopters, robôs…), algumas
pessoas parecem acreditar que é assim que alguém não-binário se vê. Que são
pessoas que não merecem ser levadas a sério. E validar alguém que se identifica
como objeto realmente iria lançar um belo caos nas lutas e sistemas de
categorização da sociedade. O problema é que só acreditam nessa falsidade porque
nunca se dignaram a pesquisar sobre o assunto nem a tentar conceber como é que
género pode ser um espectro, algo contínuo, uma área inteira de possibilidades,
tal como tudo na natureza: género neutro, género fluído, demirapaz,
demirapariga, agénero, entre outros. É uma questão de combinar ou rejeitar os
géneros binários. Enquanto sociedade, nós criamos categorias para tudo, para
facilitar a comunicação e o entendimento do que nos rodeia. Construções sociais
e modelos são necessários. Mas quando são mais limitadores do que úteis, quando
excluem pessoas e atropelam os seus direitos, ou quando o número de exceções ou
que não se enquadra nas categorias é muito elevado, reconhece-se que está na
altura de criar um modelo novo. Porquê que a sociedade insiste tanto num modelo
de género binário? Porquê que se recusa a ver as suas falhas? Nós dizemos que
existe dia e noite, mas sabemos que não há um limite claro entre os dois e que
limites de horas são criados por nós. Contudo, o tempo entre o dia e a noite
não é um ser vivo na nossa sociedade para se poder ofender, magoar ou sentir
excluído. Pessoas não binárias, por outro lado, sim.
E eu sou uma pessoa não-binária – e considerar-me tal não tem nada a ver
com não aderir a estereótipos de mulher, até porque eu adiro a uns quantos e já
mencionei que não senti pressão por ser lide como mulher. E gostava de, pelo
menos, poder registar-se como tal, e ter uma linguagem que permitisse
respeitar-me a mim próprie, mesmo que outras pessoas não se dispusessem a
fazê-lo, sem ter de recorrer a pronomes não oficiais ou tentar improvisar o
encaixe da letra “e” no fim das palavras. Como é que eu digo, por exemplo, que
sou “irmã” de alguém? Eu já fiz estudos
de provavelmente todas as hipóteses consideradas por alguém em português, neste
post [http://caixinha-any.blogspot.com/2018/11/pros-e-contras-das-varias-formas-de.html], sem chegar a uma solução ideal. E mesmo quem
sabe do meu género e o quer respeitar, acaba apenas por partilhar o problema.
Não que muita gente o queira respeitar… Ao número de más reações que tive, eu
neste ponto já nem digo nada a ninguém. Acabo por ir stressar para a casa de
banho quando as pessoas se referem a mim como “mulher” ou “ela”, por não me
conseguir concentrar no resto do dia de cada vez oiço um meme sobre géneros
não-binários ou que invalida o problema de assumir o género das pessoas, e por
criar, aos poucos, uma barreira entre mim e o mundo. Eu sou por natureza uma
pessoa extremamente honesta, que adora discutir, e brincar, e criar conexões
significativas com outras pessoas. Mas quando oiço alguém a gozar com género,
ou tenho medo do que a pessoa diria se soubesse que sou não-binárie, eu nem
sequer tenho energia para investir numa relação que provavelmente não ia durar,
porque se ia tornar tóxica para mim. Ser uma pessoa não-binária devia ser
libertador… em vez disso, afeta a minha relação com as pessoas e eu não consigo
discutir nada que seja minimamente político, por receio de me distrair e
começar a fazer paralelos com o meu género. Ser uma pessoa introvertida não
ajuda – ou uma relação com alguém tem significado, ou só serve para esgotar a
minha energia social, e eu creio que as discussões que tive sobre género até
agora me deixaram cansade para o resto da vida.
Eu considero-me feminista, mais especificamente interseccional, porque nem
toda a gente do sexo feminino teve a mesma experiência sortuda que eu e porque
acredito que as várias caraterísticas de uma pessoa fazem com que ninguém tenha
as mesmas lutas para lutar: sexualidade, género, sexo, religião, cor de pele,
etnia, classe social, tipo de corpo, ter deficiências físicas ou mentais… tudo
isso torna as pessoas únicas mas não menos merecedoras de direitos. Como Kimberlé Crenshaw diz: “When feminism does not explicitly
oppose racism, and when anti-racism does not incorporate opposition to
patriarchy, race and gender politics often end up being antagonistic to each
other, and both interests lose.” A
ideia do feminismo interseccional é que ninguém é livre enquanto outra pessoa
estiver acorrentada, e nunca será possível dizer que, por exemplo, mulheres já
têm direitos iguais aos homens enquanto houver mulheres negras sem direitos ou
a ser discriminadas. O exemplo por sua vez implica que a discriminação se
estende a homens negros e que afirmar que homens têm mais direitos que mulheres
NÃO é uma verdade absoluta. Também implica que os preconceitos se podem
combinar, então uma mulher negra pode sofrer de sexismo, racismo, e ainda
coisas específicas às vezes chamadas de misogynoir.
Então eu defendo a luta pelos direitos de género, de QUALQUER género. Isso
inclui homens, e pessoas não-binárias. Não defendo que essa luta seja
considerada mais importante que outras nem a criação de “Olimpíadas da
opressão” para se saber que grupo é mais marginalizado, porque não acho que
faça sequer sentido separar completamente essas lutas. E contudo, às vezes
custa-me defender as pessoas quando fica claro que elas não sabem que quem é
como eu existe, quanto mais tentarem retribuir lutando pelos meus direitos em
troca. Eu sou feminista, e luto para validar as experiências e pelos direitos
de toda a gente, porque é o que acredito que está certo. Mas se estivesse à
espera que fizessem o mesmo por mim, mais valia esperar sentade…
Irónico, não é? Eu não suporto “Olímpiadas da opressão”, mas às vezes
parece mesmo que a opressão de algumas pessoas recebe mais atenção do que de
outras.
E portanto, aquilo que eu penso sobre género é que é algo pelo qual tenho
de esperar. Esperar para poder assumir, esperar para poder existir legalmente,
esperar para ter mais opções género-neutras em vários contextos, esperar para
poder ter acesso a cuidados médicos que para já só estão acessíveis a pessoas
trans binárias ou que mentem como se o fossem, porque a sua disforia é maior
que a integridade… e acima de tudo, esperar que reparem em pessoas não-binárias
e, só talvez, comecem a contribuir para diminuir a nossa espera ao juntar-se à
luta. Pois por este andar, eu ei de morrer e todos os meus feitos serão
atribuídos a uma mulher chamada Ana Rita, uma pessoa que nunca existiu. E eu?
Eu não terei deixado nada neste mundo.
Então espero que a morte não venha antes do meu género.