19 de maio de 2020

Espero que a morte não venha antes do meu género...


Enquanto pessoa do sexo feminino, não posso dizer que a minha experiência quanto ao meu género atribuído à nascença tenha sido má. Oh, houve alguns percalços, desde estranhos a assobiar-me e até uma vez seguir-me na rua desde que tenho 10 anos, a fãs de coisas nerds ou otakus a ignorar a minha contribuição para essas conversas, preferindo falar com o meu pai que me acompanhava mas pouco percebia do assunto, porque não pareciam acreditar que uma “rapariga” percebesse do assunto. Mas – talvez por viver em Portugal – esses episódios são raríssimos, e os episódios positivos são muitos mais. Os meus pais sempre me encorajaram a experimentar todo o tipo de atividades, nunca ouvi incentivos para aprender a cozinhar para sustentar um futuro marido, e mesmo estando a trabalhar na área de engenharia informática, onde a proporção de mulheres para homens é cerca de 1 para 15 (se não menos), nunca ninguém apresentou expectativas positivas nem negativas com base no género que entendem que tenho. Sem exagero, eu cheguei em criança a sair em jornais infantis em notícias como “única rapariga a fazer a escalada” num evento no Parque da Cidade no Dia Mundial da Criança, e contudo eu não escalei para fazer nenhum statement político, só porque me apeteceu. Nunca me pressionaram para ter filhos, nem para casar, e os meus pais até aceitaram que eu sou bissexual, embora a minha mãe tenha demorado mais tempo. A única coisa em que ainda sinto pressão por ser entendide como mulher é para fazer a depilação, mas verdade seja dita que eu não gosto de pessoas excessivamente peludas, sejam do género e sexp que forem.

Sim, género E sexo, porque isso são duas coisas separadas. Por sexo obviamente entende-se a biologia da pessoa, e mesmo isso não é binário, havendo quem é intersexo e apresente caraterísticas sexuais ambíguas (não, hermafroditismo completo não ocorre nos seres humanos e por essa e outras razões o termo “hermafrodita” é incorreto). Já género é mais difícil de definir, porque tem a ver com como a pessoa se vê a si própria, como se identifica. A razão não interessa: embora seja importante combater estereótipos de género e seja incorreto dizer que alguém é do género ao qual melhor adere aos estereótipos associados, é válido uma pessoa começar a questionar o seu género por causa da sua aderência a esses estereótipos. Há quem questione também por causa da maneira como se sente em relação ao seu corpo e do que considera disforia física, um certo desconforto e stress relacionado com partes do corpo usadas para designar o seu sexo – e contudo, também é difícil dizer que é isto que denota que uma pessoa é trans, porque nem todas as pessoas trans sentem disforia, e porque a biologia não foi exatamente simpática ao atribuir às pessoas coisas como períodos. Há ainda disforia social, que tem a ver com o como alguém se sente a ser tratada pelos pronomes e outros indicadores de género: se os pronomes associados ao seu género de registo a deixam desconfortável, se está confortável com esses mas se sente ainda melhor com outros, se passa mal quando alguém se refere a si como homem ou mulher… Tantas coisas fazem parte da experiência trans, e da experiência cis – pessoas que não são trans e portanto se identificam com o género de registo à nascença – e contudo, nenhuma dessas coisas serve como critério. Só cada indivíduo pode afirmar aquilo que é.

E é assim que um assunto complicado na verdade se torna simples: as pessoas não precisariam de tentar entender o que é género se dessem umas às outras autonomia para se identificarem como se sentissem melhor. Em parte, esse roubo da autonomia às pessoas trans vem do facto de que muita gente receia que isso se sobreponha à luta pelos direitos das mulheres cis, e que o reconhecimento do género de alguém abafe a discriminação com base no sexo. Esse receio é infundado: como sexo e género, do ponto de vista da luta trans, são apresentados enquanto conceitos distintos, as lutas são distintas também e não há razão nenhuma para se invalidarem – pelo contrário, há até experiências comuns que poderiam fortalecer ambos os movimentos. Porém, para complicar tudo, há pessoas no espectro trans que são não-binárias – isto é, que não se identificam 100% ou a tempo inteiro com um dos géneros binários, homem e mulher. Isso por si é bastante inofensivo. Mas quando a única menção a pessoas não-binárias que a sociedade tem são memes, onde trolls agem como se pessoas não-binárias se identificassem não com géneros mas como objetos (árvores, attack helicopters, robôs…), algumas pessoas parecem acreditar que é assim que alguém não-binário se vê. Que são pessoas que não merecem ser levadas a sério. E validar alguém que se identifica como objeto realmente iria lançar um belo caos nas lutas e sistemas de categorização da sociedade. O problema é que só acreditam nessa falsidade porque nunca se dignaram a pesquisar sobre o assunto nem a tentar conceber como é que género pode ser um espectro, algo contínuo, uma área inteira de possibilidades, tal como tudo na natureza: género neutro, género fluído, demirapaz, demirapariga, agénero, entre outros. É uma questão de combinar ou rejeitar os géneros binários. Enquanto sociedade, nós criamos categorias para tudo, para facilitar a comunicação e o entendimento do que nos rodeia. Construções sociais e modelos são necessários. Mas quando são mais limitadores do que úteis, quando excluem pessoas e atropelam os seus direitos, ou quando o número de exceções ou que não se enquadra nas categorias é muito elevado, reconhece-se que está na altura de criar um modelo novo. Porquê que a sociedade insiste tanto num modelo de género binário? Porquê que se recusa a ver as suas falhas? Nós dizemos que existe dia e noite, mas sabemos que não há um limite claro entre os dois e que limites de horas são criados por nós. Contudo, o tempo entre o dia e a noite não é um ser vivo na nossa sociedade para se poder ofender, magoar ou sentir excluído. Pessoas não binárias, por outro lado, sim.

E eu sou uma pessoa não-binária – e considerar-me tal não tem nada a ver com não aderir a estereótipos de mulher, até porque eu adiro a uns quantos e já mencionei que não senti pressão por ser lide como mulher. E gostava de, pelo menos, poder registar-se como tal, e ter uma linguagem que permitisse respeitar-me a mim próprie, mesmo que outras pessoas não se dispusessem a fazê-lo, sem ter de recorrer a pronomes não oficiais ou tentar improvisar o encaixe da letra “e” no fim das palavras. Como é que eu digo, por exemplo, que sou “irmã”  de alguém? Eu já fiz estudos de provavelmente todas as hipóteses consideradas por alguém em português, neste post [http://caixinha-any.blogspot.com/2018/11/pros-e-contras-das-varias-formas-de.html], sem chegar a uma solução ideal. E mesmo quem sabe do meu género e o quer respeitar, acaba apenas por partilhar o problema. Não que muita gente o queira respeitar… Ao número de más reações que tive, eu neste ponto já nem digo nada a ninguém. Acabo por ir stressar para a casa de banho quando as pessoas se referem a mim como “mulher” ou “ela”, por não me conseguir concentrar no resto do dia de cada vez oiço um meme sobre géneros não-binários ou que invalida o problema de assumir o género das pessoas, e por criar, aos poucos, uma barreira entre mim e o mundo. Eu sou por natureza uma pessoa extremamente honesta, que adora discutir, e brincar, e criar conexões significativas com outras pessoas. Mas quando oiço alguém a gozar com género, ou tenho medo do que a pessoa diria se soubesse que sou não-binárie, eu nem sequer tenho energia para investir numa relação que provavelmente não ia durar, porque se ia tornar tóxica para mim. Ser uma pessoa não-binária devia ser libertador… em vez disso, afeta a minha relação com as pessoas e eu não consigo discutir nada que seja minimamente político, por receio de me distrair e começar a fazer paralelos com o meu género. Ser uma pessoa introvertida não ajuda – ou uma relação com alguém tem significado, ou só serve para esgotar a minha energia social, e eu creio que as discussões que tive sobre género até agora me deixaram cansade para o resto da vida.

Eu considero-me feminista, mais especificamente interseccional, porque nem toda a gente do sexo feminino teve a mesma experiência sortuda que eu e porque acredito que as várias caraterísticas de uma pessoa fazem com que ninguém tenha as mesmas lutas para lutar: sexualidade, género, sexo, religião, cor de pele, etnia, classe social, tipo de corpo, ter deficiências físicas ou mentais… tudo isso torna as pessoas únicas mas não menos merecedoras de direitos. Como Kimberlé Crenshaw diz: “When feminism does not explicitly oppose racism, and when anti-racism does not incorporate opposition to patriarchy, race and gender politics often end up being antagonistic to each other, and both interests lose.” A ideia do feminismo interseccional é que ninguém é livre enquanto outra pessoa estiver acorrentada, e nunca será possível dizer que, por exemplo, mulheres já têm direitos iguais aos homens enquanto houver mulheres negras sem direitos ou a ser discriminadas. O exemplo por sua vez implica que a discriminação se estende a homens negros e que afirmar que homens têm mais direitos que mulheres NÃO é uma verdade absoluta. Também implica que os preconceitos se podem combinar, então uma mulher negra pode sofrer de sexismo, racismo, e ainda coisas específicas às vezes chamadas de misogynoir. Então eu defendo a luta pelos direitos de género, de QUALQUER género. Isso inclui homens, e pessoas não-binárias. Não defendo que essa luta seja considerada mais importante que outras nem a criação de “Olimpíadas da opressão” para se saber que grupo é mais marginalizado, porque não acho que faça sequer sentido separar completamente essas lutas. E contudo, às vezes custa-me defender as pessoas quando fica claro que elas não sabem que quem é como eu existe, quanto mais tentarem retribuir lutando pelos meus direitos em troca. Eu sou feminista, e luto para validar as experiências e pelos direitos de toda a gente, porque é o que acredito que está certo. Mas se estivesse à espera que fizessem o mesmo por mim, mais valia esperar sentade…

Irónico, não é? Eu não suporto “Olímpiadas da opressão”, mas às vezes parece mesmo que a opressão de algumas pessoas recebe mais atenção do que de outras.

E portanto, aquilo que eu penso sobre género é que é algo pelo qual tenho de esperar. Esperar para poder assumir, esperar para poder existir legalmente, esperar para ter mais opções género-neutras em vários contextos, esperar para poder ter acesso a cuidados médicos que para já só estão acessíveis a pessoas trans binárias ou que mentem como se o fossem, porque a sua disforia é maior que a integridade… e acima de tudo, esperar que reparem em pessoas não-binárias e, só talvez, comecem a contribuir para diminuir a nossa espera ao juntar-se à luta. Pois por este andar, eu ei de morrer e todos os meus feitos serão atribuídos a uma mulher chamada Ana Rita, uma pessoa que nunca existiu. E eu? Eu não terei deixado nada neste mundo.

Então espero que a morte não venha antes do meu género.