18 de abril de 2019

Então... Sobre a catedral de Notre Dame que ardeu, eu tenho visto dois tipos de posts: Posts que lamentam a perda da catedral e divulgam os esforços feitos no sentido de estudar o que aconteceu e recuperá-la, e posts que condenam o dinheiro investido na recuperação e a forma como esta desgraça está a receber muito mais atenção que outros problemas mundiais que deviam ser prioritários.

E eu devia estar a acabar um trabalho de faculdade, mas decidi partilhar os mixed feelings que tenho por ambas as opiniões, até porque acho que é uma posição digna (não diria neutra, mas também não é nenhuma das anteriores). Para que conste, eu tenho noção de que não sei tudo e agradeço quem puder acrescentar mais nuances e informação a todas as coisas que digo (aceito links para ler), quem em concordância ou a discordar:

1 - É obviamente verdade que questões como a fome, a segurança e o património de outros países deviam ser prioridades. Isto dito,

a) O facto de se estar a mover fundos para reconstruir a catedral não rouba o dinheiro que podia ser dedicado a essas causas. Se não houve mobilização nesse sentido, é porque as pessoas/governos não querem/podem contribuir, não porque estejam tão tesos que têm de decidir se vale mais o património da França ou pessoas a morrer de fome

b) Falar da fome em África não me parece ser a melhor maneira de passar o argumento de que as prioridades dos governos estão trocadas, sinceramente. Há vários impedimentos à interferência de governos entre-países, e o que aconteceu na França... seria melhor confrontado com a pobreza no próprio país

c) Há de facto vários casos de património que ardeu noutros países - incluindo catedrais - que nem sequer ficaram conhecidos, e sem dúvida parte das razões é a forma como os países em questão são considerados "menos importantes". Por sua vez, isso está relacionado com um afastamento cultural e com falta de representatividade e de contacto. Mas comparativamente, as catedrais que foram alvo de desastres (pelo menos as que vi mencionadas) representam perdas muito menores que a de Notre Dame, e não é preciso muito para além de uma comparação visual. De certeza que são importantes para as suas populações, e é esta insistência em renegá-las para um patamar de desimportância que mantém esses países longe de oportunidades para florescer. Mas, embora eu pudesse aceitar que alguém argumentasse que todos os países deviam receber igual atenção e apoio, não apoio que digam que Notre Dame não tenha importância nenhuma nem que seja indigna de recuperação. [Mais nos pontos seguintes]

2 - Muitas das pessoas que reclamam pelos contributos destinados à recuperação de Notre Dame nada fazem na direção de apoiar as causas que supostamente defendem. De facto, muitas das pessoas que reclamam parecem nunca ter presente na mente que esses gravíssimos problemas mundiais existem sequer, a não ser quando lhes convém lavar as mãos por não contribuirem para as causas a seu alcance. Ora...

a) Não digo que a carapuça sirva a toda a gente, e compreendo na perfeição a quase impotência perante causas mundiais tão grandes e enraizadas nas sociedades em que são encontradas (como... meio segundo para adivinhar...: a fome em África! yay, acertaram!).

b) Isto dito, muitas pessoas que contribuem para uma causa contribuem para outras - até porque quem tem dinheiro só não o aplica devidamente se não quiser e/ou não tiver consciência

c) Esta é realmente uma estratégia utilizada para as pessoas se livrarem das suas responsabilidades, consciente ou inconscientemente. De facto, trazer à baila a fome em África tornou-se o exemplo mais comum do que as pessoas dizem para evitar contribuirem de forma positiva para o mundo. Ao mencionar um problema demasiado complexo para ser solucionado por nós, ou mesmo por um conjunto de pessoas, isso está ao mesmo tempo a apelar à pena, a diminuir todos os restantes problemas por comparação com o mencionado, e a justificar o porquê de não se estar a fazer nada quanto a isso.

3 - Tenho visto gente chamar a catedral de Notre Dame de "bem material", reduzindo-a a algo no mesmo nível de um carro, uma cadeira,... quase insinuando que preocupar-se com a catedral é uma preocupação de rico e inteiramente capitalista.

a) Não é que a fama e o capitalismo não venham à baila, mas símbolos não são bens materiais. E a catedral era um símbolo poderoso em muitos sentidos: era um símbolo religioso, cultural, histórico, patrimonial, literário, artístico, talvez mesmo exotérico e outros que me escapam. A forma como tanta gente tem falado dela deixa-me abismade com tanta ignorância, e não creio que isso seja classismo da minha parte, pois a maioria das pessoas que vi dizerem isso são pessoas com tantos estudos como eu - quem não os tem, dá para perdoar.

b) Mas após a recuperação, aí sim, acho que será aceitável chamá-la de bem material, da mesma forma (mentira, no caso da catedral é muito mais significativo) que se os meus desenhos ardessem e alguém se oferecesse para os reproduzir sem a menor diferença instantaneamente (vamos supor que é possível por propósitos de argumentação), não teriam o mínimo de valor para mim, pois todos os meus sentimentos, pensamentos, esforço e tempo dedicado teriam sido perdidos. E isso não se recupera. Arte não se recupera, nem se sara a ferida que fica nas pessoas que a perdem. Acrescentando ao facto de perder arte todo o significado que se perdeu com ela, não posso aceitar ver pessoas insultar de tal maneira o que se perdeu.

c) Vale vidas? Não, não vale. Mas foi construída por vidas, e isso também não deve ser desprezado. Se se preocupam tanto com bens materiais, dispensem os carrinhos e esse tipo de coisa. Acham a comparação injusta? Pois, então é adequada.

Ok, acho que era tudo. Talvez venha a editar o post se vir mais argumentos