É engraçado como cabelo pode ser uma coisa tão importante.
Cortar o cabelo é uma forma de recomeçar. Quando alguém se anda a sentir muito embaixo, se quer sentir renovado ou livrar do peso que tem sobre os ombros, cortar o cabelo faz uma diferença enorme.
Certos penteados são uma forma de apropriação cultural. Uma série de tranças, "cabelo de preta" e potencialmente até rastas são algo com significado para muitas culturas e já foram até uma forma de proteção ou de resistência, e quando gente branca e de culturas maioritárias as usa desprezando o significado que tiveram só porque é moda ou bonito, e nem reconhece o próprio privilégio.
Cabelo está fortemente associado a género. Não devia, mas o facto é que mulheres de cabelo curto às vezes são confundidas com homens e vice versa trocando géneros binários. E imensas pessoas trans e não-binárias, mesmo quando concordam que género e cabelo - juntamente com roupa e outros fatores físicos - não deviam andar de mãos dadas, acabam por se sentir melhor com penteados que fazem com que o seu género seja mais vezes percepcionado corretamente.
Essas 3 noções, em especial a primeira e a terceira, são tão significativas para mim...
É engraçado, pois embora muita gente ache que cabelo curto não me fique mal e meia dúzia de pessoas até goste mais de me ver assim, a maioria - especialmente pessoas mais novas - preferia ver-me com cabelo comprido e ficou até em choque quando o cortei. O que se compreende, porque numa semana eu tinha o cabelo pelo rabo e na semana seguinte tinha-o quase todo rapado e a parte que não estava, estava curta.
Mas gosto pessoal é uma coisa - e desde que eu me prefira assim, o que prefiro (embora neste momento eu precise urgentemente de ir ao cabeleireiro), é o que importa. O que me deixa um bocado atordoada é como a maioria das pessoas se parece incomodar por eu já não parecer tão... feminina. Eu nunca usei maquilhagem e sempre vesti a primeira coisa que tirava do armário, mas ainda tinha uma cara e corpo considerados razoáveis e tinha um cabelo bonito. Agora que nem o cabelo tenho, as pessoas parecem desconfortáveis por eu não me encaixar tanto no padrão nem de mulher, nem de beleza, delas.
E o mais irónico é que elas me dizem isso não para me fazer sentir mal mas para darem a entender que acham um desperdício e me encorajarem a deixá-lo crescer de novo, mas a única coisa que estão a conseguir é convencer-me de que fiz bem em cortá-lo: assim faço notar valores meus mais significativos que cabelo e aparência, e sinto-me mais autêntica. Sinto que o meu género está a ser mais notado, mesmo que as pessoas não saibam propriamente que o estão a ver e fiquem um bocado desconfortáveis.
Sou decididamente muito menos lida como uma típica rapariga cis hétero (não de forma consciente, porque ninguém pensa "vai ali uma rapariga hétero", but still), e muito menos lida como alguém que faz certas coisas para agradar - e como eu claramente não sou nenhuma dessas coisas, isso faz-me sentir autêntica e afirmada.
Sinto-me bem por não ser influenciável, e até acho piada a como parece que sou tão do contra: quando era pequena as pessoas diziam que o meu cabelo parecia uma vassoura, e ao crescer as pessoas passaram a adorá-lo - até a minha família - e parecia que na semana antes de o cortar, quando já tinha tomado a decisão, mesmo quem não sabia que eu o ia cortar se estava a lembrar de dizer como esperava que eu nunca o cortasse e o achava lindo. Uma pessoa que me disse isso ainda nem sabe do corte, e provavelmente ficará desgostosa. E nem estou aqui a falar da utilidade prática: poupo mais de meia hora a lavar e secar o cabelo.
O ponto é que, mesmo depois de tanto tempo, as pessoas às vezes ainda fazem comentários que não são ofensivos, mas que dão a entender que preferiam o meu cabelo antigamente. E espantou-me descobrir que foi algo com tanto peso para elas, de certa forma ainda mais do que para mim. Foi até bom eu ter feito isto porque, levando as pessoas a ser mais diretas, eu fico a saber o que elas pensam e o que posso esperar em situações mais extremas - por exemplo, se elas reagem assim só por causa de cabelo, sei que teriam uma reação muito mais perturbada se eu optasse por fazer transição física e tomar hormonas masculinas para ficar com uma aparência que me levasse menos vezes a ser lida como mulher.
Por outras palavras, eu não gosto que assumam coisas sobre mim, e eu acho que muita gente deduzia que me conhecia minimamente e que eu era A, B e C. Ao cortar o cabelo, basicamente abalei a ideia que tinham de mim e ainda as fiz ser mais cautelosas, pois passei a impressão de não ser tão previsível como elas queriam.
Eu nunca tive disforia física, nem tenho (enquanto que social tenho bastante). Ou pelo menos sempre foi assim que pensei. Gravidez deve ser a única coisa que me causa o que agora reconheço como extrema disforia, tanto física como social. Mas de certa forma, com exceção disso, tenho disforia física na forma social? Ok, explicando: O meu corpo não me incomoda e em certos aspetos até o adoro - é incrível como ser trans e/ou não-binárie se pode traduzir em experiências tão diferentes: é comum pessoas não-binárias afab (assigned female at birth) não gostarem do seu peito, mas eu adoro o meu. Basicamente, embora a sociedade ache que pessoas trans se sentem presas no corpo errado, isso representa uma percentagem quase nula da comunidade trans, e seria muito mais correto dizer que pessoas trans se sentem presas pela percepção que as pessoas têm dos seus géneros em função dos seus corpos. O cabelo é das coisas que mais leva a misgendering, e portanto tem importância para mim. Ainda para mais sendo algo que posso mudar sem custos quase nenhuns nem consequências.
Espanta-me. Espanta-me como há pessoas que se incomodam tanto só por causa de cabelo.
Mas espanta-me ainda mais que elas se consigam incomodar mais que eu, que de maneira nenhuma considero isto só cabelo. Esta é outra ironia. Elas dão imenso valor à mesma coisa que eu, mas por razões completamente distintas. Elas acham que, por ser só cabelo, não há qualquer ponto em deixá-lo menos atrativo (embora algumas considerem as vantagens práticas). E eu contenho-me para não desabafar sobre como me sinto mais leve e como isto apazigua a minha disforia, porque sei que ninguém captaria o quanto o meu género é mais importante do que o número de pessoas a que agrado.
Não é só cabelo, para mim.