1 de dezembro de 2017

Papanicolau

É horrível como um corpo considerado feminino pode ser sujeito a exames tão invasivos, às vezes sem razão nenhuma.

Se uma pessoa designada mulher à nascença for sexualmente ativa, em particular se tiver sexo com pessoas designadas homens à nascença,  realmente fazer o Papa Nicolau é importante, permite detear cancro e blá blá blá. Mesmo assim, as suas deciões deviam ser respeitadas...

Mas o que me preocupa é a desconsideração por tantos casos. 
Médiques mais honestos admitem que nunca se ouviu falar de qualquer risco em virgens - contudo, há médiques por aí que não querem saber disso para nada e que insistem que mesmo quem é virgem devia fazer. Ninguém está aqui a por em questão o género ou o background do médico - o que está em questão é a maneira como uma pessoa pode ser forçada - e em alguns países, esses exames são mesmo obrigatórios ou então a pessoa é ameaçada de não receber x tratamento que quer se não aceitar o exame - e, praticamente, violada. Porque um exame desses sem consentimento é uma violação.

Para além de violação, é uma experiência traumática para muita gente. Para algumas pessoas, por ser humilhante, para outras, por ser doloroso ou desconfortável. E imagino eu que uma pessoa virgem ou que nunca tenha tido nada "lá em baixo" fique tensa e portanto há de magoar mais ainda.

E lésbicas? E pessoas assexuais ou que não planeiam ter nenhum relacionamento sexual?

E pessoas não-binárias ou homens trans que se sentem desconfortáveis com aquela parte específica do seu corpo, parte essa que ainda por cima as obriga a passar por algo que tanta gente descreve como uma forma de tortura?

Há pessoas virgens ou não sexualmente ativas que são obrigadas a fazer esse exame, dá falsamente positivo, e a tortura é prolongada por imenso tempo, tudo desnecessariamente.

O mais irónico é a quantidade de desinformação. Há uma quantidade abismal de mediques que não sabem que não é necessário que virgens, pessoas que nunca tenham tido relacionamentos e afins correm aproximadamente 0 riscos (felizmente, em alguns lugares ainda há um certo cuidado e usa-se uma espécie de cotonete para não romper o hymem, embora essa seja a coisa que menos me incomoda - o que deve ser incómodo é ser-se penetrade pela primeira vez com uma coisa. Odeio ter de escrever isso por palavras...).  Há médiques que não sabem se lésbicas devem fazer o papa nicolau ou não (devem, mas não custa não ter certos cuidados e não assumir que todas as "mulheres" têm relações com homens). Há médiques que são descuidados e que magoam bastante a pessoa com o espéculo. Há médiques que não têm cuidado com os termos a que se referem aos pacientes e aos seus corpos, assumindo que são necessariamente mulheres. Há médiques que assumem que, a partir do momento em que uma pessoa é adolescente, é sexualmente ativa e que provavelmente só não lhes diz isso por vergonha, ntão nem lhes passa pela cabeça que uma pessoa possa ser virgem ou não estar confortável com aquilo. Não perguntam isso, não perguntam a orientação da pessoa, não perguntam o seu género, não perguntam se está a usar pílula para não ficar grávide ou para controlar o período e regularizar hormonas... É tanta coisa assumida sobre uma pessoa, há uma desumanização tão grande, que eu fico horrorizada e só consigo temer por quando chegar a minha vez. 

E se uma pessoa recusar o exame uns tempos e depois se revelar que ela tem cancro, o quê? Há muitos tipos de cancro, e contudo as pessoas não são pressionadas (ou mesmo forçadas) todos os anos a assujeitar-se um exame e a por coisas dentro do corpo para se descobrir se têm cancro ou não. O cancro da próstata mata imensas pessoas designadas homem, o exame é mil vezes mais simples e menos doloroso, e as pessoas estão longe de ser pressionadas para o fazer, muito menos antes dos 40 e tal anos.

Em Portugal, o direito ao próprio corpo ainda é razoavelmente respeitado. O nível de sexismo não é tão gritante como em muitos países. Mesmo assim, se há algo que me é comum são mulheres cis (esta frase não se aplica a mulheres trans, uma vez que aqui estão em questão os corpos considerados femininos pela sociedade) - e pessoas designadas mulheres que ainda não sabem que não o são a desejarem "ter nascido homens". Eu própria já desejei isso, e é estranho como hoje acordei um bocado com essa sensação, apesar de hoje em dia considerar essa expressão transfóbica e me considerar uma pessoa não-binária. 

Mas o ponto é que mesmo pessoas que são realmente mulheres e que adoram o seu corpo têm, muitas vezes, essa frustração pel fardo que é o corpo "feminino". É um tipo de corpo que pode engravidar sem o querer, que sangra durante a vida toda e que arruina a felicidade de parar de sangrar pelos sintomas horríveis da menopausa, que tem de estar depilado, que é extremamente sexualizado mas cuja sexualidade é entendida como vergonhosa e impura, extremamente objetificado, extremamente explorado, extremamente examinado, extremamente sujeito ao entendimento externo...