Bom dia, professor.
Este email é sobre a aula de hoje às 8h10, à qual eu apenas compareci na primeira metade, e é precisamente sobre a razão de eu não ter comparecido à segunda. Eu não queria ser demasiado direte (a terminação em "e" é intencional, explico adiante), mas é tanta coisa para dizer que se eu não for imediatamente ao ponto nunca mais acabo de escrever.
Embora eu considere as aulas de gestão importantes, eu não as irei frequentar se alguns pormenores continuarem como estão, pois esses pormenores dizem respeito a coisas que me afetam bastante. Embora perceber a matéria seja um meio para atingir a nota que quero, não acho que valha a pena sacrificar a minha saúde mental por causa disso. Considerando a cadeira que ensina, acho que vai compreender que é uma questão de prioridade de objetivos. A razão prende-se principalmente com a maneira como abordou certas questões sociais, nomeadamente em relação ao género. E não, eu não vou acusar o professor de ser sexista, homofóbico, transfóbico nem de nada que se assemelhe - até porque eu acredito que toda a gente tem um certo grau de preconceito internalizado, esses incluídos, e que não é justo apontar o dedo a pessoas que estão cientes de coisas diferentes - mas, pelo contrário, vou partir do princípio que não tinha a intenção de fazer ninguém sentir-se excluído e tentar sugerir maneiras de não excluir ninguém na prática. Nada do que eu vou criticar pode ser considerado "grave", mas são coisas com as quais lido tão constantemente que já não tenho energia para me sujeitar a elas voluntariamente - são como picadas de mosquito: só uma, pode não significar nada, mas uma infestação de mosquitos podia causar mensos problemas. Também espero que não encare isto como uma afronta e que saiba que eu não estou ofendide, estando até a considerar alguns dos conceitos mencionados em aula. Por exemplo, o dos marcadores somáticos (sinceramente, combater a influência deles é algo que eu tento fazer a tempo todo, tal como contribuir para que outras pessoas façam o mesmo) - mas é precisamente por consideração a isso e ao facto de que o professor também está sujeito a eles que estou a escrever este email. Não para que mude imediatamente a maneira como aborda esses assuntos sociais - até porque isso leva tempo - mas para pelo menos tomar consciência deles e questioná-los.
Antes de tudo, vou esclarecer o quê que não é, de todo, um problema: menções a estudos ou a estatística. Lá porque coisas como género ou assim estão envolvidas, tenho uma certeza significativa de que isso não incomoda ninguém. Principalmente porque estatística tende a a apresentar valores específicos, não a generalizar. Dizer que há uma maior probabilidade (e indicar exatamente qual é) de homens terem mais acidentes de carro é consideravelmente diferente de dizer que homens são piores condutores - como deve ser óbvio.
Contudo, as coisas que foram comentadas acerca deles tinham alguns problemas:
Por um lado, sobre o estudo que dizia que Portugal era um país mais feminino, a maneira como os conceitos foram definidos em aula podia ter sido um bocado diferente. Claro que não podia fugir da definição estereotipada que foi considerada no estudo, e que era importante apresentá-la para nós compreendermos o resultado. Mas podia ter dito algo como "O estudo considerou a definição tradicional de feminino e masculino, que significa..." - algo que desse a entender que as caraterísticas incluídas na definição não são inerentementes masculinas nem femininas.
O professor mencionou o exemplo onde a namorada disse que não gostava dos brincos oferecidos, e referiu como era possível isso ser uma indireta para o facto de mesmo gostando dos brincos, ela querer transmitir que havia algum outro problema. Sabendo disso e do quanto certas atitudes têm um significado menos aparente, pergunto-me se lhe terá ocorrido a possibilidade de o silêncio da maioria das raparigas querer transmitir que havia algum problema. Não sei o que cada uma delas pensa, mas o problema que mencionei no parágrafo anterior foi notado por várias - e, embora o professor tenha feito questões diretamente às alunas , estas sucediam-se a menções do que se entendia por masculino/feminino (como disse no parágrafo anterior), etc... foram muitas pequenas coisas, e quer alguma rapariga tivesse algo a acrescentar às questões feitas, quer não, nesse ponto a vontade de falar já não era muita. Obviamente, o silêncio não quererá sempre dizer que houve algum problema no que o professor disse - há sempre o fator da timidez e o medo de responder erradamente - mas é uma causa possível.
Sobre o estudo da condução, eu não discordo propriamente da razão apontada pelos alunos - sobre como homens tendem a conduzir com menos cautela, com mais agressividade, etc... - enquanto UMA das razões possíveis, mas acho que foi desperdiçada a oportunidade de mencionar o papel da cultura na formação desses comportamentos, mesmo que o conceito estivesse destacado no slide. Mas eu queria aproveitar a dualidade homem/mulher que foi mencionada até aqui para dizer que... bem, não existem só homens e mulheres.
Eu não sei até que ponto o professor sabe alguma coisa sobre questões lgbt+ e se sabe o que são pessoas trans, portanto vou explicar o que são pelo sim pelo não: uma pessoa trans(género), ao contrário de uma pessoa cis(género), é uma pessoa que não se identifica com o género atribuído à nascença. Ou seja, alguém que tenha sido registado como mulher e se identifica como mulher (e se se identifica, é-o, independentemente do corpo, comportamento, orientação ou aparência que tiver), é cis, tal como a maioria da população. Se alguém foi registado como mulher e se identifica/é homem, é trans. Mas há outra possibilidade para alguém ser trans: não se identificar nem como homem nem mulher. É o meu caso, daí eu estar a habituar-me a terminar palavras que digam respeito a mim com a letra "e" em vez de "a" e a usar os pronomes "elu/delu/..." (há outras combinações possíveis, nenhuma oficial). Mais alguns adendos que contrariam o que a maioria da sociedade acha: nem todas as pessoas trans se sentem "presas no corpo errado" e querem modificar o corpo, daí o termo trans ser abreviatura de transgénero, não de transsexual, pois só a porção limitada de pessoas que querem fazer modificações corporais se classifica como transsexual, sendo trans(género) um termo mais abrangente. E ser trans também não significa sentir que se é de um género oposto ao do sexo com que se nasceu, pois 1) a pessoas não-binárias não é possível aplicar essa relação de oposição 2) pessoas intersexo são registadas como homens ou mulheres apesar de biologicamente não serem de facto nenhuma dessas hipóteses, contudo, se uma pessoa intersexo registada como mulher é/identifica-se com esse género, isso torna-a cis, não trans.
Isto tudo interessa porque eu até podia ter acrescentado a minha opinião sobre o assunto, se o professor não tivesse pedido que uma mulher falasse. Se eu respondesse, eu estaria a dar-me por mulher, e neste ponto eu já não aguento mais mentir sobre quem sou e reforçar a maneira como as outras pessoas - incluindo alunos - me vêm. Já basta não haver uma linguagem "neutra" oficial que me permite respeitar-me , e não poder mudar o meu género de registo para o correto, já que isso também não existe. O professor podia de facto querer que apenas mulheres falassem - e nesse caso, então não houve problema - mas se o objetivo era pedir a opinião de pessoas que não eram rapazes, então devia ter pedido que "pessoas de outros géneros" falassem. Já se se referia a pessoas que foram educadas como mulheres, podendo querer relacionar isso com a tal questão cultural que estava nos slides, então se calhar interessava-lhe pessoas designadas mulheres à nascença. O termo mais correto é mesmo esse - em inglês há até abreviaturas úteis, afab para "assigned female at birth" e amab para "assigned male at birth". Ou seja, considerando que aconteceu em aula, eu não só não podia responder por ter pedido pela opinião de uma mulher, como fiquei sem saber qual dos dois tipos de pessoas que mencionei lhe interessavam, porque sei que a maioria das pessoas não faz distinção entre esses grupos.
Ainda sobre questões trans, agora que já expliquei o que isso é, deve compreender que não são só mulheres que engravidam - basta uma pessoa ter o sistema reprodutor chamado de feminino (obviamente esse nome deixa de fazer sentido quando se considera que não pertence só a mulheres, daí algumas pessoas sugerirem chamar-lhe ovariano). Portanto, aquilo que foi dito sobre a baixa natalidade devido a, por exemplo, pressão em entrevistas de emprego, não afeta nem só mulheres, nem todas as mulheres (pois para além de infertilidade ser possível, mulheres trans não têm útero nem nenhum dos órgãos necessários, já que uma mulher trans foi designada homem à nascença). A questão afeta pessoas que podem engravidar.
Sobre questões lgbt+ que não se prendem com assuntos trans, detetei ainda uma frase que mostrou que não estava a considerar pessoas que gostam (exclusivamente ou não) do próprio género - no exemplo sobre oferecer brincos à namorada. Quando o professor passou a aplicar o episódio que disse que tinha acontecido consigo ao resto da turma, fez uma associação qualquer que implicava que só rapazes podiam ter namorada. Não sei as suas palavras exatas, mas disse explicitamente "rapazes" e "namorada". Tenho a certeza de que sabe que há pessoas que não são hétero e provavelmente isso foi só um pormenor que lhe escapou, porém, estou a chamar a atenção para que tente controlar melhor isso no futuro. Deverá ser mais simples do que ter em consideração a existência de pessoas trans.
Ironicamente, na metade da aula a que eu faltei contaram-me que o professor disse que "depende" seria uma das palavras mais importantes da cadeira, mas não sinto que isso se tenha refletido na maneira como lidou com a opinião de alguns alunos. Repare que eu não estou a questionar a validade das suas respostas, nem que não hajam efetivamente respostas erradas dadas pelos alunos - apenas que, em alguns casos, as respostas dadas foram pouco consideradas. Mas esse é só um pormenor que estou a transmitir também por causa do que outras pessoas comentaram, não tanto algo que me afete, portanto acredito que se o problema persistir outras pessoas lidarão com ele como acharem melhor. Não quero ser porta-voz de ninguém, muito menos sem me pedirem.
Se este email parecer demasiado informal, crítico, ou exagerado, eu peço desculpa. A minha intenção é apenas esclarecer o problema e não sei como o fazer por completo sem comunicar diretamente. Agradecia receber uma resposta (demore o tempo que precisar, na próxima semana é feriado na sexta e portanto não é preciso que responda até lá), nem que essa resposta fosse a pedir esclarecimentos, a dizer que não se interessa por questões sociais (duvido que seja o caso, pois foi por me parecer aberto à discussão e preocupado com questões éticas que eu deduzi que escrever isto não seria um desperdício do meu tempo), que acha que as minhas críticas não se aplicam... Qualquer coisa.
Cumprimentos de ume alune que só quer saber se vai às próximas aulas,
Ana Rita